Vizinhos ilustres

Elis Regina, Lupicínio, Moacyr Scliar, Vasco Prado, Zorávia Bettiol e família Veríssimo: lugares que têm a marca dessas personalidades


Bairros de Porto Alegre guardam memórias de moradores célebres

Última atualização em 22 de maio de 2023
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Cultura
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Toda cidade tem seus moradores ilustres – quanto mais antiga, mais celebridades foram forjadas pelas ruas, ao redor de monumentos, entremeadas pelo tecido urbano das metrópoles. Porto Alegre tem os seus famosos, cuja influência interfere na própria dinâmica dos bairros. Ao longo de 251 anos de história, muita gente que nasceu aqui ou adotou a cidade ganhou projeção pelos mais variados motivos, de políticos a artísticos.

O cantor e compositor Wander Wildner imaginou a figura mais famosa da história ocidental fixando residência em Porto Alegre. Na canção Jesus Voltará, ele questiona em qual bairro Jesus Cristo viveria, caso resolvesse morar na capital gaúcha em seu retorno ao mundo. 

Mas em que bairro Jesus vai ficar?

Em que rua Jesus vai morar?

Na Santa Cecília ou na Conceição?

No Espírito Santo ou na Assunção?

Em seus versos, Wildner menciona alguns bairros batizados com nomes religiosos, especulando a vizinhança em que Jesus iria se instalar. Imaginação artística à parte, as ruas da cidade guardam a história de gente ilustre. Vale a pena passear por alguns desses locais.

IAPI, o bairro que viu Elis aprender a cantar 

O nome oficial é Conjunto Residencial Passo D’Areia, mas todo mundo chama de Vila do IAPI, sigla para Instituto de Aposentadorias e Pensões dos Industriários, entidade que aportou os recursos para a construção do complexo residencial destinado aos trabalhadores da indústria. A construção começou em 1942 e terminou em 1954, com a ocupação das cerca de 2,5 mil moradias.

O local é considerado patrimônio cultural da cidade e tem proposta de urbanismo integrado, que é estudada até hoje. Por entre as moradias, que se dividem em casas e prédios, há muita arborização, com praças e espaços para convivência, e centros comerciais distribuídos para facilitar o acesso dos moradores.

Em uma das casas da Rua Rio Pardo, bem na frente de uma praça, cresceu Elis Regina Carvalho Costa. Quando morava ali, ganhou o título de melhor cantora do Rio Grande do Sul pela primeira vez, aos 13 anos – troféu que recebeu outras duas vezes. Aos 15 anos, Elis assinou seu primeiro contrato profissional para cantar em bailes e programas de auditório. Segundo um dos biógrafos de Elis, o músico e escritor Arthur de Faria, ela aprendeu em Porto Alegre a manejar seu talento vocal e a se apresentar nos palcos e na televisão. Aos 19 anos, a cantora partiu para o Rio de Janeiro, onde ninguém a conhecia. Em cerca de um ano, se tornaria uma das artistas mais populares do País.

A Vila do IAPI ainda guarda as recordações de sua eterna musa. A área verde na frente da casa da Rua Rio Pardo foi renomeada como Largo Elis Regina. A residência, aliás, ainda é reconhecida por quem passa por ali como a de Elis. Também não é difícil encontrar gente que afirma ter conhecido a artista, convivido com ela.

Nos arredores do Parque Alim Pedro, o principal do bairro, alguns bares e mercados reúnem moradores e simpatizantes, tudo cheio de simplicidade e simpatia. Hoje, mais de 80 anos depois do começo da construção, a Vila do IAPI fica no coração da Zona Norte de Porto Alegre, cercada por avenidas de grande movimento, como a Plínio Brasil Milano e a Assis Brasil, artérias obrigatórias para que circular pela região. No entanto, no interior daquele pequeno mundo de grandes árvores e prédios baixos, ainda ecoa a lembrança e voz da maior cantora que o Brasil já conheceu.

Bom Fim de sonhos, guerras e literatura

Nas primeiras páginas de A guerra no Bom Fim, romance de estreia do escritor Moacyr Scliar, o narrador descreve uma manhã de inverno nesse antigo bairro, localizado na Zona Central de Porto Alegre. As pombas, acordadas com as primeiras luzes do dia, bicavam migalhas no chão e desviavam das carroças do leiteiro e do padeiro, que já transitavam pelas ruas entregando sua mercadoria aos ainda sonolentos moradores, que aos poucos despertavam para mais um dia frio.

Esse é o começo da história de Joel, homem judeu que rememora sua infância no bairro porto-alegrense ao mesmo tempo em que a Segunda Guerra Mundial se desenrola na Europa. Assim como seu personagem, o próprio escritor, de origem judaica, cresceu no Bom Fim.

Filho de judeus imigrados para o Brasil, Scliar nasceu no bairro que acolheu a maior parte dos imigrantes judeus que chegou a Porto Alegre a partir da segunda década do século 20. Ali, imprimiram variados traços de sua cultura, como as tradicionais sinagogas da União Israelita e do Centro Israelita Porto-alegrense. Até pouco tempo ainda se comia boa comida kosher em recantos escondidos do bairro.

Para além dos personagens de Scliar, o Bom Fim é um dos bairros mais boêmios e badalados da cidade. Sua Feira Ecológica, que ocorre religiosamente todos os sábados das 7h às 13h, é disputada por gente de toda a cidade. Produtores de todo o Estado vêm comercializar produtos 100% orgânicos e sustentáveis, fazendo a alegria de quem quer ter uma alimentação saudável ou de quem só quer saborear ingredientes frescos e gostosos.

Nas ruas, cafés e bares fazem a alegria dos adeptos de todos os horários: de manhã à madrugada, tem opção para quem quer tomar café, bater um lanche, um almoço ou jantar no capricho ou ainda uma bebidinha em qualquer dos turnos. Destaque para a Lancheria do Parque, ponto tradicionalíssimo na Avenida Oswaldo Aranha, que abre às 6h e fecha às 23h45, e para o Bar Ocidente, também na Oswaldo, que há décadas abriga parte relevante da cena cultural da capital.

Outro Lupicínio, retirado na Cavalhada

O que o músico Lupicínio Rodrigues, o maior dos boêmios, conhecido por seu gosto pela noite, faria em uma chácara retirada do perímetro urbano, longe dos bares, das cantorias e do agito das madrugadas? Faria o que fazem os moradores do campo: criava galinhas, gansos, cabritos, gatos, cachorros e até um cavalo, que puxava charrete carregando o músico pelo bairro. Ah, claro, e brincava com os netos no bucólico cenário.

Com os vizinhos das chácaras vizinhas, a moeda não eram suas composições: o que valia ali eram os alimentos da horta de Lupi, trocados por itens dos quais o ilustre morador necessitava. Mas, como quem é rei não perde a majestade, conta-se que, ao fecharem-se as porteiras, a festa rolava solta naquele descampado. Quem relembra essa história é o músico e escritor Arthur de Faria, que prepara uma biografia de Lupicínio Rodrigues, que deve ser lançada ainda em 2023.

Talvez um dos bairros que mais tenham se transformado ao longo das últimas décadas, a Cavalhada (ou Vila Nova, a depender da localização do antigo sítio de Lupi) era o coração da zona rural da cidade, cercada por bosques e propriedades. Cortada pelas Avenidas da Cavalhada, Vicente Monteggia e Otto Niemeyer, a região está imensamente mais habitada do que nos tempos do músico, apesar de ainda guardar áreas verdes e até pequenas chácaras. Bares, restaurantes e cafés surgem à medida que a densidade populacional aumenta com prédios e, principalmente, condomínios horizontais. Nos sítios que ainda sobrevivem, é tradicional a cultura do pêssego, que virou marca registrada da região

Santuário de arte na Pedra Redonda, onde viveram Vasco Prado e Zorávia Bettiol

Por entre degraus, árvores e elevações do terreno do Colégio João Paulo I, mais uma turma de crianças dá passos cuidadosos enquanto observa as esculturas que ornam o caminho. É mais uma oficina de arte em homenagem ao patrono cultural da escola, o escultor Vasco Prado, um dos artistas plásticos mais importantes do País, que desde os anos 1950 vem formando e influenciando os movimentos artísticos especialmente no Rio Grande do Sul, onde viveu.

A relevância de Prado para as artes plásticas já seria motivo suficiente para que fosse homenageado por qualquer instituição de ensino. O Colégio João Paulo I, no entanto, tem motivação extra para chamá-lo de patrono. As dependências da escola ficam na casa-ateliê do artista, na qual ele viveu por mais de 25 anos com a esposa, a também artista plástica Zorávia Bettiol, no bairro Pedra Redonda, Zona Sul de Porto Alegre

O casal deixou na casa muitas esculturas, entre elas figuras femininas e as representações de cavalos, uma das obsessões de Vasco Prado. Hoje, os alunos se inspiram na obra dos artistas em oficinas de esculturas com argila, dando os primeiros passos no mundo das artes visuais. Em entrevistas, Zorávia lembra de administrar o ateliê que dividia com Prado na casa da Pedra Redonda, em um terreno de mais de mil metros quadrados, onde chegaram a trabalhar 12 funcionários. Além do trabalho, que fluía intensamente por entre as árvores e nas proximidades da beira do Guaíba, o casal também criou três filhos no local.

Hoje, além do Colégio, o bairro Pedra Redonda abriga muitas associações e clubes sociais. São grandes áreas, muito arborizadas, que se transformaram em sedes sociais para variados sindicatos e organizações. O terreno acidentado limita a abertura de pontos de comércio e lazer, mas aos poucos alguns bares e cafés encontram espaço para atender o público que vai descobrindo os encantos da Zona Sul.

Fundado no começo do século 20 para ser o balneário dos porto-alegrenses, o Pedra Redonda tinha praias limpas e acessíveis e recebeu esse nome devido às formações rochosas que invadiam as águas. Hoje o Guaíba está poluído e o acesso das pessoas à orla não é tão fácil, já que boa parte da beira do rio está ocupada por condomínios privados. 

O Petrópolis cresce, mas o coração da família Veríssimo permanece no bairro

Quando o escritor Érico Veríssimo adquiriu um terreno no bairro Petrópolis, em 1942, a vizinhança do que viria a ser a casa da família era composta por árvores, terrenos baldios e algumas casas distantes umas das outras. Aos 10 anos, quando foi morar ali com a família, o pequeno Luís Fernando, filho de Érico e Mafalda, jogava bola na rua de chão batido.

Hoje, o bairro inteiro se transformou: prédios altos, asfalto por todo lado, a correria da Avenida Protásio Alves. O que se manteve intacta foi a casa dos Veríssimo, onde o autor de O tempo e o vento escreveu sua maior obra e onde hoje vivem Luís Fernando e sua esposa, Lúcia, que guardam camadas de lembranças de variadas fases de uma das mais importantes famílias para a literatura brasileira.

Em entrevistas, o escritor Luís Fernando Veríssimo reclama da excessiva urbanização do bairro, mas pondera que ainda é a sua casa, da qual não pretende sair. Além disso, costuma chamar a atenção para as árvores, muitas e antigas, que florescem pelas ruas do Petrópolis. Observar os ipês-roxos e amarelos e os jacarandás, que florescem em diferentes épocas, enche o escritor de satisfação.

Fundado na década de 1920, o Petrópolis era formado quase que inteiramente por chácaras. Algumas famílias influentes da época construíam suas casas ali – muitas ainda permanecem de pé, contando a história dessa parte da cidade. A intensa urbanização também trouxe vantagens: o comércio é variadíssimo ao longo de todo o bairro, com opções de bares e restaurantes para todos os gostos. O maior movimento está ao longo da Avenida Protásio Alves.

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